Muitos mitos surgiram em torno da figura de Geraldo Vandré. Em 1968, após o AI-5 e as prisões de Caetano e Gil, o músico paraibano deixou o país com receio de também ser preso. Com a forte censura, não foi difícil surgir especulações de que o mesmo estaria morto ou sendo torturado na prisão. Ao retornar ao Brasil em 1973, declarou ao Jornal Nacional : "Quero agora só fazer canções de amor e paz".
A declaração ao JN e o ostracismo que mergulhou Vandré na década de 70 alimentaram estórias de que ele teria sofrido "lavagem cerebral", torturas severas, ficado louco ou mesmo que teria feito um acordo com os militares para retornar ao país. Quando em 1985 ele gravou Fabiana, música em homenagem à FAB - Força Aérea Brasileira, pareceu uma traição incompreensível aos valores defendidos pelo cantor em 1968. Só poderia ser explicado por algum tipo de loucura causada por sequelas de torturas sofridas.
Em 1995 Vandré respondeu a um pedido de entrevista com um bilhete escrito a mão dizendo: “Trata-se de uma sociedade para a qual a BELEZA cumpre função secundária e dispensável. Aqueles que se ocupam da beleza têm, portanto, função secundária e dispensável". Mas ele termina a mensagem dizendo que "sem beleza não existe O HOMEM FELIZ”. E assina: Vandré, com um PS datado de 14 de junho de 1995: “Cada vez mais distante”. (http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=1721).
Em entrevista concedida em 2000 (http://cliquemusic.uol.com.br/materias/ver/geraldo-vandre-rompe-silencio) Vandré deu algumas respostas que revelaram certa excentricidade:
Entrevistador - O sr. ficou marcado como um compositor de protesto. Alguma dessas canções novas têm essa característica?
Geraldo Vandré – Nunca fui um compositor de protesto. Sou um músico de formação erudita. Ouço Villa-Lobos, Wagner...
Entrevistador – Mas muitas das suas canções são sim de protesto, Caminhando, Canção da Despedida, e estão longe de ter um perfil erudito.
Geraldo Vandré – Não quero falar do passado. Ouça essa minha canção, que eu acabei de compor, ainda não tem título (começa a cantarolar um tango em portunhol): "Hoje cantor de mi tango/ Um tango do meu viver/ La Pampa, larga e serena/ Nela, vou renascer/ E há o outro lado, Argentina/ Que parte de mi querer".
Entrevistador – O sr. pode mostrar alguma canção inédita em português?
Geraldo Vandré – Eu fiz essa música para a FAB (retira da bolsa um cartão com a letra de Fabiana, com um brasão da Força Aérea desenhado no verso).
ENtrevistador – Não é estranho alguém que protestou contra a ditadura militar hoje compor músicas em homenagem à Força Aérea?
Geraldo Vandré – Vocês não entendem, nunca entenderam (irritado, bate com força a colher com coalhada no prato). A minha relação com os militares não foi política e nunca vai ser. Caminhando era um aviso: "Olha gente, desse jeito não dá mais".
À essa altura Geraldo Vandré parecia uma pessoa amargurada, ressentida muito mais com a falta de compreensão e reconhecimento artístico do que com os militares. Determinado a cumprir um auto-isolamento um tanto depressivo, mas profundamente reflexivo e intelectualizado. A imagem que transmitia era de alguém cuja inteligência comprometeu a lucidez.
Em 2004, Vandré concedeu uma entrevista a Ricardo Anísio - jornalista, poeta e produtor musical paraibano. Nesta entrevista o artista parece estar mais à vontade e revela uma lucidez incrível. É possível discordar da visão do músico, mas é inegável que suas idéias são coerentes. Reproduzo a íntegra da entrevista (http://www.ritmomelodia.mus.br/entrevistas/entrev%202004/02%20geraldovandre/geraldovandre.htm):
1-) Ricardo Anísio - Andaram falando em um retorno seu a carreira artística. Isso é verdade? Certa vez disse ao nosso jornal que a entidade Vandré estava morta. Ela ressuscitaria?
Geraldo Vandré- Não, eu não volto atrás com o que disse. Mas eu também lhe deixei claro que estava compondo peças para piano e que buscava contato com uma pianista européia para registrá-las. Cheguei a perguntar se você não queria cuidar da produção do disco. Mas a minha atividade profissional de cantor ela encerrou. Cumpri a função que estava determinada para mim aqui na Terra.
2-) RA - Isso é uma coisa mística? Você não se dizia ateu?
GV- Não sou místico e nem necessariamente ateu. Sou agnóstico e realista. Mas sei que há uma regência cósmica de nossas vidas, algo que nos impõe alguns limites e que norteia isso a que chamamos de destino. Mas sei que nós temos muita responsabilidade sobre o rumo que toma nossa vida. É comodismo demais entregar tudo ao Deus dará.
3-)RA- Lê algum livro de auto-ajuda ou de temas místicos como os de Paulo Coelho, por exemplo?
GV - Se é de auto-ajuda é uma coisa que vem de nós e nós é que temos de criar as fórmulas para nos ajudarmos certo?! Com relação a este senhor, o Paulo Coelho, acho que tenho mais com que me ocupar do que ficar entrando nas suas viagens loucas. Ainda prefiro reler Brecht, Joyce ou Graciliano Ramos e José Lins do Rego. Mas na verdade tenho lido muito pouco, porque ainda tenho armazenadas muitas coisas que li há duas décadas e que ainda não processei da forma como devia. Acho que a literatura se perdeu nos últimos anos, e não me interessa muito.
4-) RA - Ao escrever a canção "Fabiana", para a Força Aérea Brasileira, você chocou seus admiradores e disse que isso não lhe importava mais. Ainda pensa assim?
GV- Eu disse que havia escrito a canção porque sempre fui um apaixonado por aviões. Agora, a minha relação com as Forças Armadas hoje, é de muito respeito mútuo. Eles me tratam com dedicação e sabem das minhas questões existenciais.
5-) RA - Como nasceu essa relação de respeito entre o autor de um hino anti-militarista e os militares?
GV - Quando voltei do exílio, no final de década de setenta, meus companheiros me receberam com decepção, porque eu estava vivinho da silva, e eles me queriam mártir e morto. Seria para eles mais uma bandeira. E eu voltei doente e meio perdido em meu país, quando justamente os militares me acolheram e me deram tratamento médico, e me alojaram. Essa é uma relação de seres humanos e não de instituições. Outra coisa, tem que se acabar com essa idéia de que dentro dos quartéis todo mundo será sempre de direita. As coisas mudaram, e a tendência dos jovens oficiais hoje é mais de esquerda, ou de centro, na pior hipótese. Não foram as Forças Armadas as responsáveis pelos anos de ditadura, mas sim os homens que estavam à frente delas naquele momento.
6-)RA - E realmente você nunca foi torturado?
GV - Nunca! Nem sequer fui exilado, porque escapei do país antes que me prendessem e me exilassem. Saí do Brasil sem que me encostassem um dedo sequer, embora soubesse que era considerado de alta periculosidade pelo SNI (Serviço Nacional de Informação). Mas os tempos mudaram, e mudaram também os militares. Hoje quem é de esquerda no Brasil? Os compositores? Você quer brincar comigo? Vivem sorrindo para as câmeras de TV e vendendo discos e mais discos. Esses são os comunistas e socialistas? E o público deles, onde fica? Como aceitam que as gravadoras multinacionais se valham dele da pior maneira possível? Essa esquerda é uma coisa estereotipada, ficou demodê e não funciona mais. Qual a diferença dela para o que chamam de direita. Não são os lados que importam (risos).
7-) RA - Qual sua visão sobre o Governo Lula?
GV - O povo no poder! Então o povo deve estar feliz e satisfeito. Mas não é bem assim, não é essa a realidade. O Lula faz o governo menos popular que já vi, e era dele que esperava-se um mandato voltado para o povo. Veja só que loucura, não acha? O problema do Brasil é na sua conjuntura, seus vícios homéricos e a falta de cultura de sua gente. Os políticos não têm interesse em educar, para não dar consciência política, percebe?! Não está diferente com o Lula, até porque eles venderam a alma para chegar ao poder, e suas boas intenções ficaram no discurso.
8-) RA - Ainda continua um clandestino em sua terra?
GV - É para gargalhar, mas é um fato. Eu sou a prova da ilegalidade. Quiseram me anistiar e eu disse não! Anistia é perdão e eu não tinha do que ser perdoado, veja que coisa louca. Então voltei a morar no Brasil, mas sem a anistia, eu sou um clandestino em meu próprio país”
“Não vou pedir perdão”
O autor de “Caminhando” acha contraditório aceitar a anistia se não admite que cometeu crime algum
9-) RA - E não pretende pedir perdão?
GV - De que? De ter escrito uma canção? De não concordar com aquele regime político? Ora, eu acho que quem assinou o pedido de anistia decretou que havia cometido um delito, e eles nunca observaram isso. Depois eu sou quem não tem lucidez? Mesmo que eu achasse que tinha sido um delito, feito isso por ideologia, jamais me desculparia.
10-) RA - Por isso não podem comercializar seus discos?
GV - Sim. Porque se eu estou na ilegalidade, minha obra também é ilegal no país. A engrenagem é toda cheia de absurdos, de contradições. Mas não compactuo com isso, e a aí me consideram o louco, por não aderir a essa onda toda de teorias furadas e nenhuma prática com fundamentação jurídica.
11-) RA - E seus CDs, eles foram recolhidos?
GV - Ganhei na justiça. Como sou advogado com especialização justamente em Marcas e Patentes, que passa pelos direitos autorais, provei que minhas obras eram ilegais. Nunca assinei contrato para CD também, porque não tínhamos bola-de-cristal para antever sua invenção. Tenho todos os direitos sobre minha obra, hoje. Meus discos sé saem se eu os produzir.
12-) RA - Como avalia a MPB atualmente?
GV - Quase não a conheço, ouço mais música erudita, isso me interessa. Mas acho que o Zé Ramalho, o Vital Farias, o Sivuca e aquela moça que você levou para cantarmos juntos (N.R - Essa moça é Cátia de França) lá na Praia do Poço e o Chico Buarque fazem canções de muita qualidade, eu é que estou muito hermético em minha crença sobre essa sigla M.P.B. Na sua grande maioria, as coisas estão muito aquém do que ser poderia esperar que chegassem a ser.
13-) RA - Elba Ramalho o chamou de louco e disse que não usou seu nome quando gravou "Canção da Despedida" porque você queria excluí-la do disco. O que tem a dizer sobre isso?
GV - Nada. A loucura é uma coisa relativa de quem a analisa. Se ela se acha normal, eu sou realmente um louco. Não compactuo com os intelectualismos e com os psicoligismos que regem-na, mas não vou perder tempo em falar sobre minha lucidez. Pela forma como me excluo de tantas convenções dos tempos atuais, certamente sou diferente, e quando alguém pensa diferente o melhor é chamá-lo de louco, para que ninguém lhe dê importância. Mas depois disso ela gravou "Disparada" com o Zé Ramalho e o Geraldo Azevedo. Ela devia esquecer o louco.
14-) RA - Mas o Geraldo Azevedo também tem uma estória. Você disse que ele nunca foi seu parceiro em "Canção da Despedida". Confirma isso?
GV - Claro que confirmo. Eu nunca tive parceiro nessa canção, a escrevi sozinho e ela está gravada no disco que fiz na França ("Das Terras de Bemvirá) mas quando foi lançado no Brasil veio sem essa faixa, não sei porquê, se foi por censura ou algo que o valha. A verdade é que depois que a marca Vandré virou um mito monstruoso apareceram parcerias que eu nunca fiz.
15-) RA - E as homenagens? Que foi que achou do CD do Quinteto Violado interpretando apenas composições de sua lavra?
GV - Não gosto dos arranjos. Mas na verdade o Marcelo (Melo, vocalista e violonista do QV) é um ótimo músico e o grupo merece respeito. Acontece que eu não aprovaria porque entrei em uma fase de muito rigor musical. Não tenho interesse de que minha obra seja revisitada, mas se o fazem, que a façam com mais requinte do que nas versões originais. Quando você grava uma música de alguém e o faz de forma piorada, não é mais homenagem, dá pra entender?!
16-) RA - Sua versão para "Asa Branca", de Luiz Gonzaga, você acha que superou a do autor?
GV - Não, mas não era essa a intenção. Quando eu resolvi incluir a composição do Gonzaga e do Humberto Teixeira era daquele jeito que eu fiz mesmo, como um aboio de guerra, um brado do homem nordestino. Aquele disco ("Hora de Lutar") era todo assim, com coisas da capoeira, dos povos excluídos e das raças segregadas. "Asa Branca" eu cantei como quem aboia mesmo, e a minha idéia era fazer isso a capela, somente a voz angustiada anunciando a rebelião. Essa foi uma reverência mesmo.
17-) RA - Então você não descarta a possibilidade de gravar um disco instrumental e nem de aparecer em um show do amigo Zé Ramalho?
GV - Eu sou um mutante (gargalhada). Uma vez desafiei você a me produzir, lembra? Mas você não topou, talvez tenha ficado assustado...Certamente que eu não descarto aceitar um convite do Zé Ramalho, mas se voltar a gravar um disco somente meu, vou querer registrar minhas composições para piano.
18-) RA - Mas não usará o nome Geraldo Vandré, não é? Afinal você disse uma vez em entrevista que "Vandré estava morto", assassinado pelas suas próprias mãos....
GV - Se eu criei esse Frankeisn tein, eu posso ressuscitá-lo. O que disse àquela época foi que não permitiria o uso do minha entidade artística por parte desse mercado de horrores em que se transformou o mundo da música.
19-) RA - Nunca mais veio a Paraíba. Alguma mágoa?
GV - Fiquei triste, digamos assim, quando minha tia vendeu a nossa casa, a casa onde eu nasci e me criei (na Av. Almirante Barroso, Parque Solon de Lucena) e onde eu pretendia fundar a Capitania de Van-Mar, uma espécie de fundação onde trataríamos de coisas da cultura e da ecologia. Mas admito que sou melhor tratado em outros Estados. Tenho saudade dos amigos e por isso devo estar aí em breve. Talvez grave meu disco de piano aí....
Geraldo Vandré tem hoje 74 anos e mora em São Paulo. Jamais se apresentou no Brasil após seu retorno em 73. A razão desta que parece ter sido uma promessa a si mesmo nunca foi claramente explicada.
Muito boa postagem... parece que Vandré é um mosaico de ideias, sentimentos e ressentimentos...
ResponderExcluirAcho que o afastamento de Vandré após estes anos todos é um cala boca imposto pelo regime. Ele nega muita coisa.
ResponderExcluirO
Mi