segunda-feira, 10 de maio de 2010

Os Novos Ventos

Finda a bipolaridade da guerra-fria, foi imposto ao mundo o liberalismo moldado no modelo econômico americano. A globalização comercial não foi um fenômeno moderno. Antes da revolução Russa de 1917, o mundo era predominantemente liberal, com grande liberdade de fluxo de capitais e pessoas. É evidente que o avanço tecnológico incorporou outros elementos ao liberalismo.
Aparentemente o auge do liberalismo moderno, sobretudo em seu componente ideológico, se deu na última década do século passado. O consenso de Washington trazia a premissa de que através da ampla liberdade aos mercados as fronteiras nacionais deixariam de ser um óbice ao aumento da riqueza e bem estar dos cidadãos. Supostamente, no futuro liberal as pessoas nascidas na Suiça ou no Haiti teriam as mesmas oportunidades de ascensão social.
Se no comunismo o controle político da economia produziu ineficiência, no liberalismo o predomínio do interesse privado sobre o público gerou crises e conflitos. Este começo de século ratifica a tese de Marx de que o aprofundamento do capitalismo fomenta a subversão e colabora para seu declínio. As contradições capitalistas provocaram uma onda de reações ao neoliberalismo. A América Latina talvez seja o melhor laboratório deste movimento.
De uma maneira geral, os países latinos americanos saíram de ditaduras militares apoiadas ou promovidas pelos EUA diretamente para sua nova cartilha, o neoliberalismo. Assim, Fujimori no Peru, Pinochet no Chile, Carlos Menen na Argentina, Fernando Henrique no Brasil, foram alguns dos que aplicaram a receita de ajuste fiscal severo, privatizações e estímulos ao capital financeiro. Dos citados, apenas o brasileiro não acabou preso ao deixar o poder.
A difusa reação social varreu a América Latina. Panelaço na Argentina, sem-terras em marcha no Brasil, manifestações indígenas na Bolívia. Foram muitas as formas as quais preconizavam a mudança política aprofundada na região. Candidatos mais identificados com as demandas sociais e as esquerdas sagraram-se vitoriosos num nítido movimento de antagonismo às políticas neoliberais. Kirchner na Argentina, Chavez na Venezuela, Vasquez no Uruguai, Lugo no Paraguai, Correa no Equador, Ortega na Nicaragua, Lula no Brasil, foram exemplos dessa onda. Este movimento pode ser visto como um todo orgânico que se traduz no fortalecimento do Mercosul, na criação da ALBA e da UNASUL.
Na virada do século o fortalecimento da esquerda e do sentimento antiamericano na América Latina contrastava o fortalecimento da direita nos EUA. W. Bush assumiu a presidência após uma eleição até hoje contestada. O 11 de setembro deu maior ímpeto à direita norteanericana. Em abril de 2002 os ianques estiveram envolvidos na tentativa de golpe na Venezuela. Em março de 2003 invadiram o Iraque contra as resoluções da ONU.
O desrespeito aos fóruns internacionais como a não assinatura do protocolo de Kyoto, violação das regras da OMC e as guerras de Bush minaram a autoridade ideológica americana. Outro abalo no domínio de Washington foi produzido pela crise econõmica de 2008/2009.
A maré política que inundou o continente chegou ao rico país do norte. A eleição de Obama foi fruto do mesmo fenômeno latino-americano. O recrudescimento liberal gerou crise econômica e promoveu a chegada ao poder de uma figura mais identificada com as bases sociais. Foi assim com o primeiro presidente negro americano, com o índio boliviano, com os mestiços Chavez e Lula. A plataforma de governo amparada em propostas sociais também é marca desse processo. Com Obama fechou-se um ciclo de declínio da radicalização de direita liberal na América.
Na Ásia, as duas últimas décadas tiveram a emergência de três atores principais. A China e a Índia se adaptaram muito bem à fase do novo capitalismo. Ganharam um peso econômico capaz de abalar o status quo. A China, em especial, tornou-se um contrapeso ao poderio americano que não existiu logo após a guerra-fria. A Russia, terceiro ator de relevância, afundou em sua crise pós-soviética e andou de lado na fase neoliberal. A crise russa de 1998 foi o fundo do poço.Vladmir Putin resgatou o orgulho russo e, tal como os latino-americanos, adotou posturas políticas e econômicas nacionalistas. A guerra na Geórgia e o recuo americano na instalação do sistema antimissil no leste europeu provaram a capaciade da Rússia de frear os interesses americanos. Não atoa o país de Putin é aliado da Venezuela e contido na questão do Irã. Ainda sobre a Ásia vale destacar que o Japão encerrou o domínio de 50 anos do conservador Partido Liberal Democrático.
A rica Europa Ocidental convive com a alternância de governos liberais e trabalhistas. A Europa foi um dos vetores da globalização moderna com sua U.E.. A adoção de medidas liberais foi requisito para redução de assimetrias aos que ingressaram no bloco. O modelo de integração europeu virou exemplo para outros blocos do mundo. Ocorre que o processo vivido no resto do mundo chegou à Europa. O ensaio deste movimento ocorreu nas duas décadas anteriores. A direita conservadora chegou à Itália com Berlusconi, à Inglaterra com Blair, a Espanha com Aznar. A França tomou um susto ao ver a força do ultranacionalista Le Pen em 2007 e a Áustria elegeu o seu mega-direitista Haider.
As mentiras da guerra do Iraque precipitaram o fim do governo Blair. A França pendeu por Sarkozy. A crise na Grécia em 2010 traz nova etapa. A única saída visualizada para os países mais atingidos é a velha receita do FMI. Novamente impõe-se a países em crise o remédio do ajuste fiscal, arrocho salarial, contenção de gastos públicos e endividamento. A reação da população é semelhante da América Latina em anos anteriores. É possível prever consequências semelhantes, ou seja, ascensão de líderes populares e plataforma de governo menos liberal.
A África continua sendo um caso particular, mas também há sinais de mudança neste continente. Cada vez mais se fala da diferentes Áfricas. Alguns países despontam como pólos mais promissores. A África do Sul busca estreitar laços com Índia, China e Brasil para ter peso semelhante a estes no cenário internacional. Os países do norte africano tem um desenvolvimento moderado como Egito, Líbia, Argélia. Na parte ocidental destacam-se as economias da Nigéria, Costa do Marfim e Senegal. A parte centro-oriental do continente continua bastante pobre e instável.
Duas potências emergentes podem estar contribuindo para um futuro de melhor destaque para o continente negro. A China tem realizado grandes investimentos em infra-estrutura e expande sua influência a partir do nordeste africano. Já o Brasil atua partindo dos países lusófonos. A bandeira de combate à fome adotada por Lula tem sido importante para a influência brasileira no continente. A Embrapa tem apoiado o desenvolvimento da agricultura africana, e agora o bolsa-família deve ser implantado no continente através da FAO. O governante brasileiro tem buscado fazer dos biocombustíveis uma ferramenta de desenvolvimento da região.
Não está clara a composição de forças neste mundo multipolar. As recentes crises tiveram o curioso efeito de redução das assimetrias globais. Se existiu freios ou encolhimentos expressivos de países ricos, países emergentes continuaram crescendo ou se recuperaram rápido. O aumento da cooperação dos excluídos do G7 tirou deste o monopólio na definições das políticas mundiais.
Existem pressões para reforma da ONU. Independentemente de uma eventual mudança formal da organização, seria possível visualizar um panorama diferente de 2003, quando a instituição foi ignorada por Bush?
A despeito da relativa perda de poder dos EUA, o país tem musculatura econômica e militar para repetir a dose do Iraque. Mas os ventos da mudança atravessaram os muros da maior potência global. É difícil crer que a opinião pública americana aceite outra guerra sem o aval da ONU.
Viveu-se no mundo a suposta crise das ideologias. Certamente essa foi uma crise de rótulos, que costumam ser melhor definidos a posteriori. Toda ação de um governante precisa estar legitimada em um pensamento perante seus governados. Desde a evangelização dos índios, à tese de ausência de alma dos negros, passando por doutrinas fascistas e comunistas, as idéias justificaram atitudes de pessoas ou nações. Olhando agora, se percebe como o mercadismo justificou a farra dos financistas no mundo. Por outro lado, a democracia como valor universal e a doutrina do medo apoiaram a invasão do Iraque, do Afeganistão e outras ingerências americanas no mundo.
O planeta experimenta uma nova fase de construção difusa do pensamento dominante. Como se vê, há uma tendência de consolidação de políticas sociais historicamente identificadas com a esquerda. Obama chega a ser tachado de comunista estando no comando da Meca do capitalismo. Por sua vez, a Europa promove a outra ponta do ideário que se consolida. Através de políticas públicas e alteração de hábitos de consumo de seus cidadãos, a agenda verde é exportada pelo velho continente.
Assim sopram os ventos para o futuro. Quando os eixos políticos, ideológicos e econômicos do mundo mudam, mudam também seus protagonistas. O país que pretende ampliar seu espaço precisa elevar suas velas na direção correta. Os cidadãos das diversas nações clamam por um modelo de maior eficiência social e ambiental. O dinheiro costuma entender essas tendências antes mesmo que haja consciência da mudança de seu fluxo. O futuro está sendo construído sob matizes ideológicas entre o vermelho e o verde. O discurso ambiental que será introduzido na próxima eleição e bandeira de esquerdistas empunhadas pelos principais concorrentes podem ser bons presságios para o Brasil.

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